De uma assentada o mercado nacional recebe dois livros de Gonçalo M. Tavares. Autêntico manjar para esta época natalícia, as prendas «Uma menina perdida no seu século à procura do pai», da Porto Editora, e «Os velhos também querem viver», da Caminho, apenas não são perfeitas porque a sensação de vazio fica aquando terminamos a leitura dos dois livros. Seria muito pedir mais um ao Pai Natal?
Gonçalo M. Tavares está de regresso, para felicidade de muitos, mas também para ser descoberto por outros “muitos”. Não com um livro, mas com dois. Um romance em «Uma menina perdida no seu século à procura do pai», uma espécie de livro teatral em «Os velhos também querem viver». Entre os dois há algo em comum, embora sejam ao mesmo tempo bastante diferentes: a perda.
No primeiro, o autor conta-nos a história de Marius, que, ao andar na rua, não consegue ficar indiferente ao rosto de Hanna (ou Hannah…), que procura o pai. Sozinha, a jovem carrega consigo uma caixa com várias fichas divididas por áreas (alimentação, saúde e segurança, linguagem, etc.), fichas que procuram determinar o comportamento pessoal e social de uma pessoa. Hanna (ou Hannah…) tem trissomia 21. Enquanto a jovem procura algo, Marius foge de algo. Na verdade, nunca saberemos de que, mas, solitários, ambos acabam por partilhar uma fuga para à frente. Este talvez seja a “mensagem” implícita no livro, nunca parar, andar sempre, seguir, avançar, não desistir, persistir, por mais que a vida não permita. Ao longo da sua curiosa viagem, Marius e Hanna (ou Hannah…) encontrarão vários insólitos personagens, como um fotógrafo que coleciona fotos de animais e pessoas com deficiências, uma família que cola cartazes em todo o mundo com o intuito de despertar as mentes de todos, dois proprietários de um hotel que deram nomes de campos de concentração aos quartos, um antiquário que adora inventar histórias, os sete «Séculos XX», etc. A pluralidade de personagens criada por Gonçalo M. Tavares é realmente deslumbrante, impossível não nos agarrarmos a eles, cada um com a sua história particular, muitas marcadas pela Grande Guerra. Mas também deve-se destacar as situações ocorridas na história, todas magnéticas, que prendem o leitor ao livro, incapaz de abanonar a estranha estrutura do hotel, o papel dos sete «Séculos XX» na História da Humanidade, a força das convicções dos cinco membros da família Stamm («- Estamos no mundo para o boicotar.»), etc. Em «Uma menina perdida no seu século à procura do pai» temos uma obra onde curiosamente «à procura» acaba por ser o menos importante, embora seja a força catalisadora de tudo, além da fuga inexplicável de Marius, que compreende no fim que o essencial é «não parar, em situação alguma, não parar».
«… e a imagem estranha – outra pessoa diria bela, no entanto não o era, bem pelo contrário, analisada de modo frio era afinal terrível – era que Fried, tal como eu, parecia pedir-lhe desculpapor não ser como ela, por ser normal e por entender as coisas; com consciência plena de que poderíamos sair da nossa tristeza, qualquer que fosse a sua profundidade, mas ela não poderia sair da quantidade de incapacidades que tinha, como que cercada de mundo a mais – porque o mundo se mantém o mesmo para todos, mas a ela sobrava mundo e a nós por vezes faltava.»
Outra peça literária brilhante é «Os velhos também querem viver». Lê-se num fôlego e é algo realmente desconcertante. Na obra editada pela Caminho, Gonçalo M. Tavares une Deuses e Homens, mortalidade e imortalidade, vida e morte, muita morte. A partir de «Alceste», de Eurípedes, o autor reconstrói a história da mitologia grega em Sarajevo, onde, entre 5 de abril de 1992 e 29 de fevereiro de 1996 morreram 12 mil pessoas.
É precisamente em Sarajevo que um sniper atinge Admeto, amigo de Apolo, que não se contenta com a sua morte. O Deus resolve poupar o companheiro, mas a Morte reclama o seu morto. É necessário um sacrifício, uma vida por outra. Pais, família, amigos… Ninguém está disposto a morrer por Admeto. Ou melhor, alguém está, alguém prescinde da sua existência, a sua mulher, a nobre Alceste, que cede o seu último sopro por amor.
Ao trazer «Alceste», de Eurípedes, para os dias de hoje, Gonçalo M. Tavares desperta o interesse sobre os clássicos da Grécia Antiga. Numa escrita bastante exigente, o autor constrói uma narrativa angustiante, onde o fim, tanto individual como humano (e o que é a guerra senão o fim da Humanidade?), dita as regras. Estamos perante um livro onde a existência caminha por uma linha ténue, onde a vida não tem nenhum valor, onde a morte surge a cada esquina. Estamos em Sarajevo, entre 5 de abril de 1992 e 29 de fevereiro de 1996. Acompanhamos com angústia a partida de Alceste, a desolação de Admeto, as incertezas dos Deuses, as certezas da Morte, os comentários do coro de observadores, supostos sobreviventes da tragédia…
«Os velhos também querem viver» tem no diálogo entre Admeto e o seu pai um dos momentos altos, um diálogo que demonstra a importância da vida, mesmo cercada de morte.
«Em Sarajevo e em redor de Sarajevo, no século XX,
a regra particular é igual à regra geral:
os mortos estão mortos, os vivos é que ainda não.»
Fonte: Diário Digital
Os Velhos Também Querem viver - Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai
Os Velhos Também Querem viver - Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai - jornal i
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